Considerações Parlamentares
Não sem ameaças de demissão por parte de proeminentes Socialistas, o primeiro Orçamento de Estado (OE) do novo governo foi aprovado, com votos a favor do Partido Socialista (PS), abstenção de BE, PCP, PAN e Joacine Katar Moreira, e votos contra do Partido Social Democrata (PSD), CDS, IL e Chega. As negociações encontraram várias fases e obstáculos, simbolizando um parlamento fragmentado e polarizado. A título de exemplo, foram discutidas mais de 1000 propostas de alteração.
Quando o Bispo é promovido a Rainha
O expectável impasse surgiu na discussão do IVA da eletricidade. Partidos do arco da direita e do arco da esquerda uniram-se no quadro de uma “coligação negativa” em favor de uma redução proporcional ao nível de consumo. A oito deputados da maioria que lhes permitiria rejeitar a proposta em discussão, os Socialistas procuravam apoio parlamentar. Formalmente privados dos mais recentes aliados de esquerda, o silêncio tornava-se ensurdecedor. Até que uma chamada caiu de onde menos se esperava. O novo líder do CDS, Francisco Rodrigues dos Santos, decidiu dar corpo à retórica de contraste com a anterior liderança enquanto expunha os limites dos aliados informais do PS, acompanhando o sentido de voto dos Socialistas no IVA da eletricidade à troca do apoio em três propostas do CDS relativas ao IMI – cujo impacto é custeado a nível municipal. A temperatura desceu e o OE foi aprovado. O nó fora desatado, invocando dois princípios: o potencial absoluto de uma maioria relativa e o potencial valor superlativo de um diminutivo. No campo de batalha, o tempo era de avançar. Mas não sem repercussões.
Quando as Regras Mudam a Meio do Jogo
No teatro de operações parlamentar, o processo democrático exige o estabelecimento de alianças estratégias das maiorias relativas. Aqui, uma abordagem pragmática deixa o momento decidir o curso de ação mais útil. O timing assume, então, particular destaque. E o timing ditou a correspondência entre duas premissas de origem distinta. Se, por um lado, os Socialistas precisavam de apoio para desbloquear o processo e aprovar o OE (premissa maior), o CDS deu o seu apoio no sentido de afirmar-se publicamente (premissa menor). Mas quais as implicações imediatas desta correspondência?
O jogo parlamentar pode ficar afetado de três formas: desde logo, surgiram novas possibilidades de coligação, o que é positivo em si mesmo. Mas não sem custos. Como uma partitura, a instabilidade posicional de base determina que quanto maior o número de notas soltas maior o risco de vulnerabilidade. Consequentemente, e em segundo lugar, clivagens internas podem acentuar-se, o que pode ser decisivo num quadro de instabilidade de base. A possibilidade de notas soltas pode aumentar. Em terceiro, e por último, o alinhamento entre Socialistas e CDS pode colocar o “acordo tácito” entre Socialistas e BE e PCP em cheque, engrossando causas de ressentimento. Por outro lado, as implicações práticas deste sentimento devem ser analisadas à luz da possibilidade de fundo: a tomada de poder pelos partidos de direita. Como ilustra a ameaça de demissão no quadro de discussão do presente OE, os Socialistas estão preparados para puxar do argumento sempre que as suas linhas vermelhas estiverem em causa.
E o Outro Rei?
O referido alinhamento não deve obscurecer o parceiro natural do CDS e atual líder da oposição, o PSD. Num momento em que os novos partidos de direita parecem estar a consolidar e alargar as suas bases de apoio, uma força agregadora apresenta-se como o único meio de reequilibrar o edifício parlamentar. Quer PSD quer CDS já deram mostras de estar sintonizados com o caráter do momento. A estratégia de convergência parece apoiar-se em três eventos que decorrerão até à discussão do OE 2022: 1) OE 2021; 2) as eleições presidenciais, em Janeiro de 2021; 3) as eleições municipais de Setembro de 2021.
Uma vez que a aprovação do OE 2021 está virtualmente garantida, pois o Parlamento não pode ser dissolvido 6 meses antes e após a eleição do Presidente da República, PSD e CDS podem preparar conjuntamente o terreno tendo em conta o OE 2022, cuja discussão terá lugar logo após as eleições municipais (as eleições no Porto assumirão particular destaque neste contexto). Assim, a estratégia comum do PSD e CDS tenderá a focar-se numa espera ativa, ou seja, em preparar o caminho tendo em conta a projeção de dois cenários: reeleição indiscutível do Presidente da República, cuja expetativa de segundo mandato mais exigente, aliado a preocupações com fragmentação e polarização do sistema político, pode favorecer a ideia de uma coligação de direita liderada pelo PSD, ou seja, de uma mudança do centro de gravidade na política nacional 2) vitória nas eleições municipais em 2021. Se estes dois cenários se concretizarem, o partido Socialista pode não apenas chegar à discussão do OE 2022 numa situação frágil, como ainda ver o surgimento de novo centro de gravidade no quadro do sistema parlamentar.
Testemunhas, apesar de si mesmas
Até lá, a expetativa é a de que a formação de alianças parlamentares será cada vez mais complexa. De modo a garantir a extensão do status quo no tempo, espera-se que o Partido Socialista continue a apostar numa estratégia de manter todas as portas abertas. Governar debaixo das circunstâncias indicadas implica explorar uma lógica de cedências e contrapartidas, prática que se deve acentuar. Mesmo que causadora de ressentimentos – como foi o caso – aumenta igualmente as hipóteses de alcançar o final da legislatura, em 2023. Neste sentido, o ónus da iniciativa caberá ao PS. Apesar de constituir governo, observar passivamente não é uma escolha. Dos Comunistas, por seu lado, espera-se que acentuem o caráter sistemático da sua responsabilidade e previsibilidade no sentido de se afirmarem como o parceiro privilegiado do PS. Tópicos como os Funcionários Públicos e medidas de natalidade assumirão prioridade na sua agenda. Relativamente ao BE, tentará tirar partido da sua relevância parlamentar para o PS – único partido cuja abstenção é suficiente para garantir a maioria socialista – para “parlamentarizar” assuntos da esfera executiva. Temas como a Política de Habitação, Vistos Gold, Saúde e Segurança Social, e assuntos digitais, devem assumir prioridade nos próximos tempos.
O processo de aprovação do OE deste ano parece ter criado o momento para renovar-se os votos entre aliados tradicionais. Resta saber quem são.