“É necessário que as empresas sejam encaradas como construtoras do progresso humano, desafio que se avoluma em momentos críticos. As que se movem em prol desse propósito serão porventura mais agregadoras e, por isso, mais resilientes.”
Arménio Rego é autor de diversos livros na área de liderança e Professor Catedrático na Católica Porto Business School. Reflete sobre a postura que as empresas devem adotar face a um novo cenário marcado pela Covid-19 e sublinha o papel efémero de cada um na sociedade.
P | O que devemos aprender para o futuro?
R | Que somos frágeis e finitos. Que não controlamos tudo o que gostaríamos de controlar. Que a ciência não tem solução para tudo o que gostaríamos que tivesse. Que somos mortais. Que não podemos tomar (quase) nada como adquirido. Que precisamos uns dos outros para viver uma vida decente. Que temos deveres para com os nossos semelhantes. Que precisamos de desenvolver garra coletiva e solidária para enfrentar o futuro.
P | Vivemos um antes e um depois do Vírus?
R | Estamos já a viver uma parte desse depois. Caímos na realidade: somos frágeis. Quanto ao depois após este depois, tenho sentimentos ambivalentes. Se fizer jus à minha visão otimista, responderei de modo paradoxal: seremos menos egoístas, mais contributivos do bem-comum e mais cautos com projeções hiperoptimistas sobre o futuro. Se responder em função da minha versão pessimista, direi, também paradoxalmente: quando o pesadelo desaparecer, decorridos um ou dois anos, voltaremos a olhar para o futuro com supremo otimismo, congratular-nos-emos com a nossa capacidade de vencer o “inimigo” através da ciência – e regressarão as pretensões nacionalistas-unilateralistas pouco inteligentes.
P | Estão em crise os modelos de governance em todo o mundo? Que administrações saem favorecidas: locais, nacionais, internacionais, globais?
R | Não sei responder de modo perentório. Acredito, porém, em alguns pontos. As empresas deveriam adotar sistemas de governança mais equilibrados, menos contaminados pela soberba, e impeditivos das enormes desigualdades de que padecemos. Relativamente às administrações que sairão favorecidas: é possível que observemos de tudo um pouco. Os “localistas” e “nacionalistas” do costume alegarão que o remédio reside na criação de mais barreiras entre povos. Os “internacionalistas” e “globalistas” argumentarão que precisaremos de governação mais intensa à escala global. O que resultará desta tensão? Ninguém sabe o que realmente ocorrerá. Mas sei o que desejo: que discursos do tipo “America First” não tenham tanto acolhimento. Todos precisamos de todos – indivíduos, comunidades, nações e países.
“O que ocorreu após o 11 de Setembro, nos EUA, é elucidativo: várias empresas instaladas no World Trade Center tornaram-se mais vigorosas após os ataques às torres gémeas.”
P | Se estivesse a gerir uma empresa, quais seriam as três primeiras que tomava?
R | Falar de touros é mais fácil do que estar na arena a tourear – diz o provérbio espanhol. Portanto, responderei que tomaria as decisões que gostava de tomar, mas respeito outras escolhas de quem está agora na arena. Primeiro: seria transparente a propósito da situação da empresa. Segundo: mostraria, com atos, que a empresa é um empreendimento coletivo, para o melhor e o pior. Terceiro: apoiaria colaboradores em situação de fragilidade. Acredito que, neste quadro de atuação, seria mais fácil garantir a sobrevivência da empresa e, até, fazê-la progredir. É em momentos críticos que se testam os sentimentos da compaixão – de líderes e de liderados. O que ocorreu após o 11 de Setembro, nos EUA, é elucidativo: várias empresas instaladas no World Trade Center tornaram-se mais vigorosas após os ataques às torres gémeas. Devido a processos de ajuda e compaixão, desenvolvidos entre empregados (líderes e liderados) sobreviventes, mas também entre estes e os familiares, essas empresas desenvolveram resiliência coletiva e tornaram-se mais fortes. Este é um desafio que cabe a todos: empresários, gestores e restantes colaboradores.
P | Nesta crise, como deve ser a relação entre a saúde pública e a saúde privada?
R | Quando tudo corre sobre rodas, é fácil subestimar o papel do Serviço Nacional de Saúde e apontar as virtudes da “saúde privada” versus os “vícios” do sistema público. Mas veja-se, agora, qual o sistema preferido por quem é apanhado pela maleita em curso! Um país seriamente desenvolvido deve ter um SNS que assegure que ninguém é preterido por ter menores recursos económicos (o que ocorre num país “desenvolvido” como os EUA deveria fazer corar de vergonha alguns dirigentes). Os dois sistemas devem coabitar, embora com prevalência do público.
Se tivesse que escolher apenas um, não hesitaria. Naturalmente, sempre respeitando a gestão criteriosa dos recursos públicos. Essa é uma responsabilidade de todos: políticos e cidadãos em geral. A propósito: se a gestão privada fosse,“geneticamente”, melhor do que a pública, não teria havido necessidade de acudir, com dispendiosos recursos públicos, a alguns desvarios.
P | Haverá sectores com danos irreversíveis?
R | Irreversíveis – não creio. Porém, com a devida ressalva de que não sou perito na matéria, acredito que setores como o turismo serão fortemente penalizados nos próximos anos. Mas também admito que nada disso ocorra e que o desenlace deste pesadelo nos encha de autoconfiança e otimismo – e nos conduza aos erros de sempre.
P | Esta crise era previsível?
R | Não creio que o fosse. A imprevisibilidade do funcionamento do mundo e da vida é grande – embora nos convençamos, por vezes, de que temos grande controlo sobre o que nos rodeia. E é isso que nos deixa menos preparados para crises imprevisíveis. Somos frágeis. Não somos omniscientes. Conviria que lidássemos melhor com essas nossas limitações e fôssemos menos “bipolares”. Ou seja, quando tudo corre bem, importa que desenvolvamos alguma prudência; quanto tudo corre mal, convirá acreditar nas possibilidades de regeneração – e trabalhar, tenazmente, para que elas se concretizem.
P | Algum comentário / ponto de vista que gostasse de comentar?
R | Se me permite, partilharei o que acabamos (eu e Miguel Pina e Cunha) de escrever num texto sobre “liderança em tempos de crise”. Pedro Brito, a quem estamos gratos pelos comentários que nos facultou, partilhou connosco que, nos últimos dias, recebera mensagens dando conta de que este surto pandémico havia criado “um certo equilíbrio das coisas”. Cito:
. “Numa era em que as alterações climatéricas estão a atingir níveis preocupantes, a poluição diminui consideravelmente em poucos dias.
. Perante o reaparecimento de políticas e ideologias discriminatórias, surge um inimigo comum mostrando que todos podemos ser discriminados.
. Tão focados na produtividade e no consumo, sem descanso e sem pausas, somos obrigados a parar e refletir.
. Numa época em que a educação é delegada a instituições de ensino, o contexto volta a juntar as famílias e a dar uma oportunidade à educação no seio das mesmas.
. Numa altura em que muitos relacionamentos interpessoais se desenrolam através de redes sociais (o que, perante o “susto”, passa a ser uma necessidade), voltamos a compreender a importância do contacto pessoal, do tato, dos abraços.
Estes pensamentos relembram-nos da nossa finitude, da precaridade da vida, e da nossa essência de seres sociais. E reforçam uma ideia que tem vindo a revigorar-se nos meios académicos, socioeconómicos e empresariais: é necessário que as empresas sejam encaradas como construtoras do progresso humano, desafio que se avoluma em momentos críticos. As que se movem em prol desse propósito serão porventura mais agregadoras e, por isso, mais resilientes”.
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