Entrar na Crise pela Porta de Entrada
Na sua última entrevista, António Costa admitiu ser difícil imaginar uma hecatombe sem transformações na sociedade. Que efeitos esperar? E de onde vem a certeza?
Moldura
Dizer que o mundo está em mutação é um lugar comum. E que as transformações realizam as transições. Cada problema e a sua pergunta são lidos como expressão da ordem de um ângulo, o da ordem habitual, esquecendo os ângulos que excluem mais do que incluem.
Se, antes da pandemia, o caminho para o cumprimento da transição excluía e rejeitava transformações radicais, para o qual se desenhavam cláusulas de ajustamento e de compensação adaptadas às necessidades contextuais, com a pandemia o foco da exclusão e da rejeição ameaça mudar de sede. O radicalismo ganhou corpo e nome. Excluído do ângulo de leitura, converteu-se no lado de todos os lados. Agora, o risco de exclusão e rejeição paira suspenso sobre as cabeças.
Contornos
Vários argumentos coincidem na visão de que o mundo não regressará a uma situação ex-ante. Esse mundo, do qual chegam sinais dos compromissos políticos de futuro, interpela o presente de várias formas:
1) Predominância do valor da eficiência sobre o das garantias formais nas ações governativas. O sucesso mais rápido de uns pressionará o insucesso mais rápido de outros
2) Radicalização do discurso a favor e contra a globalização, reforçando a relevância de estruturas superiores de decisão e de ação, ou o recuo às esferas de decisão nacional
3) Protecionismo de setores físicos estratégicos, assegurando a autossuficiência de meios que garantam respostas coordenadas a crises semelhantes, por exemplo no investimento direto estrangeiro mais criterioso em áreas como a saúde, no desenvolvimento de vacinas
4) Reconfiguração geográfica das cadeias de valor globais, por forma a diminuir a dependência de determinados países ou regiões
5) Desmaterialização do sistema financeiro e da moeda, em linha com a diversificação de meios de pagamentos, assim como da iminente “circulação” do euro digital
6) Canalização de planos de reconstrução económica e financeira para projetos de infraestruturais estratégicos, como transportes públicos, saúde, defesa, tecnologia e digital
7) Aceleração de digitalização dos processos sociais e profissionais, incrementando atividades à distância como por exemplo o teletrabalho
8) Reorganização de práticas de sociabilidade, determinadas por novas regras sanitárias nos espaços urbanos, e da sua integração e consolidação nos sistemas de saúde
9) Diminuição da mobilidade, pressionando setores cujo produto joga com mobilidade real e não digital, como o turismo, a restauração, a hotelaria, o transporte de passageiros, o setor automóvel, o setor energético
Estes elementos servirão o seu propósito se forem recebidos com estranheza. Procuram espelhar uma ambiguidade familiar. Porém, por a substância da normalidade ter ultrapassado o campo de ação habitual, regressar não é opção, apenas caminhar até ao que foi criado.
Tonalidade
A diferença entre os dois momentos torna-se evidente ao contrastar uma situação ameaçadora com a ameaça de uma situação: na primeira, estamos fora; na segunda, ainda estamos fora, mas já dentro. A nuance da abordagem ganha corpo de duas maneiras: na compreensão da relação da pandemia com cada indivíduo enquanto parte de um todo social, que o precede; e na compreensão do sentido de urgência.
A pandemia tem que ver com todos e para todos é urgente. A compreensão disso não é algo de que qualquer individual ou coletivo se possa despedir. Ela impõe-no e impô-lo-á, quer na fase de combate, quer na fase de rescaldo, quando couber testemunhar e lidar com o passado no futuro.
Esse foi o sentido da certeza do Primeiro-Ministro – a aceleração da dispersão do processo histórico. Cabe, no entanto, subsumir a multiplicidade dispersa das partes a uma ideia unívoca do todo. Dar-lhe um sentido coletivo conforme ao momento histórico.